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Pensamento Contemporâneo

Pensamento Contemporâneo

O papel dos vereadores durante uma pandemia (por Jorge Barcellos)

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Ainda que as atividades legislativas tradicionais possam sofrer interrupção numa pandemia,  os vereadores não perdem suas funções.

Exercer a vereança em situações de calamidade pública exige responsabilidade, criatividade, senso de justiça e precaução. Muitos vereadores integram grupos de risco, e por essa razão, como qualquer outro cidadão, devem atender as medidas de segurança indicadas pelas autoridades sanitárias para si e para seus familiares.

Entretanto, o poder legislativo municipal vem se modernizando graças à introdução de ferramentas digitais em seu trabalho. Hoje, a maioria das câmaras possui suas ferramentas de  internet e dispõe de equipes qualificadas seu gerenciamento, inclusive à distância.

A pandemia do coronavírus possibilita o aprimoramento da “vereança on-line”. Ela já existia na política e se aprimora neste momento: os vereadores fazem reuniões on-line para fiscalizar as ações do governo municipal,  recebem denúncias e as encaminham aos órgãos competentes. A vereança on-line é fiscalizadora e põe em ação as redes de governo que se tecem via internet: por exemplo, quando os vereadores recebem denúncias de que os servidores da sua área de assistência social, de caráter essencial, não estão recebendo os devidos equipamentos, EPIs, trazem o problema a reunião de Mesa Diretora e Lideranças On-line que imediatamente, tenta contato com o Poder Executivo para a adoção das medidas necessárias.

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Os vereadores tem um importante papel neste momento: são eles os “guardiões do isolamento”. Primeiro pelo engajamento na proteção de suas equipes de trabalho que passam a exercer suas funções na modalidade home office, sem prejuizo do trabalho legislativo. Segundo porque a eles cabe fiscalizar o rigor das medidas do Poder Executivo no que se refere a politica do isolamento. As autoridades médicas são categóricas: "não é hora de afrouxar o isolamento”. Seu papel é de fiscalizar se o Executivo Municipal está atendendo os apelos das autoridades médicas quanto as medidas de isolamento, fazer denúncias as autoridades competentes por ocasião de aglomerações na capital, denúncias quanto ao não cumprimento de medidas de proteção por órgãos públicos municipais ou empresas privadas. Tudo isto só é possível porque os vereadores possuem redes de contatos,  pessoas de suas relações que também saem a rua e observam. Se uma empresa de supermercados não oferece EPIs para seus trabalhadores, deve ser denunciada aos órgãos competentes; se há filas sem o devido distanciamento, idem. Não há o que a fiscalização não permita fazer neste momento de grande engajamento em prol do isolamento.

A proximidade da Semana Santa promoveu uma grande aglomeração no Mercado Público: os vereadores devem estar atentos, conscientizando suas redes de relações a utilizarem o comércio de bairro, a evitarem o centro da cidade em aglomerações desnecessárias: muito do que demanda a população pode ser resolvido muito próximo. E os vereadores devem cobrar do Prefeito as atitudes necessárias para evitar aglomerações nos principais centros de comércio.

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Cada vereador possui uma dimensão de educador: por isso são importantes as iniciativas individuais de cada mandato com a produção de lives, de divulgação de material informativo sobre a pandemia, divulgação de serviços porta-a-porta, etc. Alguém fabrica máscaras? O vereador divulga em sua página. Há um método melhor de limpeza da casa? O vereador divulga em sua página. Agora fiscalização e educação andam juntas nos mandatos, e inclusive, são potencializadas pelos meios de divulgação on-line. Mesmo na diferença, mesmo aqueles mandatos cuja base social está alinhada com interesses do desenvolvimento econômico, é hora de reflexão. Os vereadores que representam seus interesses, o que é normal numa democracia, devem estar conscientes de que também os empresários terão prejuízos numa segunda onda da pandemia que venha por causa do afrouxamento do isolamento. Por isso o apelo ao cessamento da atividade econômica é importante neste momento, somente atividades essenciais devem prevalecer, e isso deve ser uma posição uníssona do parlamento em defesa da vida. A tensão entre interesses sanitários e interesses econômicos não foi totalmente resolvida e é maior a importância da assunção do papel dos vereadores junto as categorias que representam. Eles são responsáveis por conscientizar a sociedade de um fato notável: a atividade econômica reduziu-se, é importante que se mantenha assim, mas não parou. Mercados, mini-mercados, farmácias e atividades essenciais estão mantidas. A roda da economia não parou completamente e os exemplos de outros países mostram que qualquer afrouxamento no isolamento pode ser fatal.

Exatamente porque vivemos uma pandemia é que os vereadores não podem se eximir de suas funções. Eles as fazem dentro de condições de segurança e são essenciais para que o Poder Executivo tome suas medidas dentro do âmbito da legalidade, submetido a fiscalização e crítica de suas ações pelos representantes dos cidadãos que se encontram em isolamento, expressando suas vontades durante a pandemia.

Numa crise, o Prefeito precisa tomar decisões e vereadores importam.  Precisamos manter a democracia na pandemia, o controle e fiscalização mútua dos poderes persiste, se não, o vírus implanta a ditadura. Conte com seu vereador, leve a seu conhecimento um problema de sua comunidade. Isso faz a diferença.              

Reflexões sobre negacionismo (por Jorge Barcellos)

warning-2284170_1280.jpg                                                                                                 Imagem de rickey123 por Pixabay 

Na segunda série da coleção da Editora N-1 que curiosamente é chamada de ‘Pandemia”, Deborah Danowski escreve o volume  intitulado “Negacionismos”. Danowski é professora do pós-graduação em Filosofia da PUC do Rio de Janeiro e após ter trabalhado com metafísica moderna, voltou-se para os temas da globalização e da crise ecológica. Seu texto de debate, proposto pela coleção, foi escrito logo a pós a eleição presidencial e a emergência da extrema direita e  pega o gancho das últimas preocupações da autora com o fim do mundo que se anuncia com a catástrofe climática e ecológica, que é objeto de negacionismo por parte da população e de políticos.

Para Danowki, o negacionismo tem papel importante na compreensão da paralisia cognitiva, psíquica e politica atual. Frente aos acontecimentos que resultaram na eleição presidencial, Danowski se vê obrigada a transferir sua preocupação com a catástrofe climática para a catástrofe política brasileira. Em seus estudos, duas são as fontes das expressões mais recentes do negacionismo: o primeiro é o negacionismo de nazistas, ex-nazistas e neonazistas que não reconhecem o Holocausto perpetrado pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial; e o segundo o negacionismo diante das práticas de criação, confinamento e extermínio em massa de animais nas fazendas e fábricas da agroindústria mundial.

Mas as eleições, e com ela a emergência de uma extrema-direita que vivia subterraneamente no país, fez  surgir um terceiro negacionismo muito pior que os anteriores, porque é feito em cima de conquistas da democracia: dos direitos humanos e à universidade brasileira, o negacionismo cultivado por parcela da sociedade representa uma ameaça ao conhecimento em suas variadas formas. Essa forma de negacionismo só encontra paralelo nos que advogam a inexistência dos campos de extermínio e se atualiza nas formas de desvalorização do conhecimento produzido na universidade que não se revelam imediatamente rentáveis; na desvalorização dos diversos campos dos direitos humanos, expressos na recusa de temas das agendas feministas, LGBT, negro, indígena, etc. É só olhar o tom dos discursos a partir da eleição, quando reservas indígenas passaram a ter novas regras para servir ao capital, terras quilombolas foram ameaçadas e sem falar do próprio patrimônio natural brasileiro, com a ameaça de abertura de reservas naturais ao turismo.

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Imagem de Pexels por Pixabay 

A hipótese de Danowski é premonitória: “temos a sensação de ter submergido, não só na negação e no negacionismo de boa parte da classe política, da intelectualidade e da população de modo geral, mas no próprio desejo de morte e extermínio, a um só tempo, do sentido e de qualquer forma de alteridade, que é a mola propulsora de todo fascismo (p.7)”. Danowski explora o campo das ciências do clima, mas ao final, o que quero dizer é que o processo é o mesmo com relação a pandemia do coronavírus. Enquanto a autora vê divergências quanto a projeção da  velocidade do aumento futuro das concentrações de gases de efeito estufa, o que vejo é a divergência do Presidente de seu Ministro da Saúde da velocidade e mortalidade de expansão do coronavírus; enquanto Danowski está preocupada em como diversos ecossistemas irão reagir, quais seus pontos de inflexão,  estou preocupado como o debate que se faz entre interesses políticos e sanitários, entre atores com poder de decisão que reagem de forma diversa, uns defendendo o isolamento, outros, o retorno as atividades econômicas. No fundo, cada grupo social que representa um interesse e não são também ecossistemas reagindo às determinações de aberturas e fechamento do comércio? São essas inflexões durante o processo que terminarão por aumentar a curva de vítimas.

O que há de comum entre a proposta de Danowski e o que atravessamos hoje? Em ambos, o negacionismo é particularmente presente e se manifesta na incapacidade de reconhecer a importância da natureza na nossa existência. No argumento de Danowski, o clima está em evidência; na minha argumentação, a pandemia do coronavirus é a mesma coisa, ela também é produto da natureza. Ambos assumem ao mesmo tempo um caráter aterrorizante “como uma fera que, provocada, reage das maneiras mais inesperadas”(p.8). Danowski assinala que a inércia, descoberta por Newton, está por detrás das políticas humanas e a razão é o esforço do capital para aumentar seus lucros à custa da exploração do meio natural, da exigência que o imperativo “voltem ao trabalho” influência às políticas sanitárias, que trabalham para “semear a dúvida, ou melhor, a percepção pública de que ainda há dúvida e controvérsia entre os cientistas a respeito da realidade”(p.9). Não é exatamente assim que age a direita mais radical, colocando a dúvida no ar “o que é mais importante, vidas ou empregos?”, discutindo políticas de saúde “isolamento vertical ou horizontal?”. Da mesma forma que a direita americana tomou como posição a negação do aquecimento global, a direita brasileira tomou a negação da pandemia como objeto de política. E da mesma forma como os Estados Unidos ficaram fora do Acordo do Clima assinado em 2015 com Trump, o Presidente, prometendo acompanhar seu ídolo americano, durante o mês de março incentivou a saída dos trabalhadores do isolamento radical. Agora, com Trump defendendo o isolamento, no seu discurso de 31 de março, o Presidente voltou a trás e defendeu o isolamento, a linha do Ministério da Saúde. Esperamos que não seja tarde demais para evitar o aumento no número de mortos.

 

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                                                                                                   Imagem de Marie Sjödin por Pixabay 

   

Danowski lembra que o termo “Holocausto” é reservado pelos historiadores para referir-se ao genocídio dos judeus pelo regime nazista “já foi algumas vezes empregado com o intuito de despertar as mesmas ressonâncias para descrever as práticas de criação, confinamento e extermínio em massa de animais nas fazendas fábricas da agroindústria mundial”. A autora chama a atenção para o detalhe de que Holocausto tem origem no termo grego antigo para sacrifício, Holos, significa inteiro e Kaustós, queimado, enquanto que o termo Shoah, mais usado na língua francesa, vem do hebraico e significa catástrofe “Os dois nomes, sendo reservados a esse acontecimento particular, trazem consigo a ideia não apenas de extermínio de um povo, mas do dispositivo de desumanização preparou e permitiu esse extermínio”(p.12). Danowski sabe que é arriscado usar o termo Holocausto para caracterizar o holocausto animal, já que era uma forma de ofender os judeus à época era representá-los como porcos, sub-humanos, o que soaria como uma heresia. Para dar esse contexto, Danowski cita a passagem de A vida dos Animais, de J.M. Coetzee:

“Eles marcharam como carneiros para o matadouro. Morreram como animais. Foram mortos pelos açougueiros nazistas. Nas denúncias dos campos ressoa com tamanha força a linguagem dos currais e dos matadouros que é quase desnecessário preparar o terreno para a comparação que estou prestes a fazer. O crime do Terceiro Reich, diz a voz da acusação, foi tratar as pessoas como animais”.

Eu acredito que o termo é adequado para os tempos de coronavírus. Parece uma imagem cruel para os tempos atuais? Mas não é exatamente assim que o vírus está tratando a humanidade, fazendo vítimas em todos os países por onde passa morrerem como... animais? Ora, a imagem do Holocausto no sentido de catástrofe é pertinente para o que vemos, esse vírus é o equivalente atual do açougueiro nazista, nossas ruas são nossos currais de criação de vírus que mata sem que saibamos; nossos ajuntamentos públicos, sem nenhuma proteção, equivalem a matadouros. A imagem da carreata de caminhões de mortos na Itália não é essa marcha para os cemitérios de que fala Coetzee? Fica a imagem do vírus como o equivalente do criminoso do Terceiro Reich, é ele que nos trata como animais. Essa imagem é cruel, mas ela não dá conta da natureza do processo que estamos vivendo com o coronavírus? Coetzee continua:

“...estamos [não mais no passado, mas hoje, aqui e agora] cercados por uma empresa de degradação, crueldade e morte que rivaliza com qualquer coisa que o Terceiro Reich tenha sido capaz de fazer, que na verdade supera o que ele fez, porque em nosso caso trata-se de uma empresa interminável, que se auto-reproduz, trazendo incessantemente ao mundo coelhos, ratos, aves e gado com o propósito de matá-los”.

 

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                                                                                                Imagem de Ronald Plett por Pixabay 

Danovisk está preocupada com as indústrias de animais, eu estou preocupado com a produção da morte pelo vírus que transforma a humanidade em animal.  Observem: trata-se também de uma empresa de degradação duplicada, porque é da parte de um vírus por um lado, e daí nossa luta entre interesses vitalistas, de defesa da vida humana, e por outro lado de interesses capitalistas de defesa da vida econômica, estes últimos muito cruéis “Devemos parar a roda da economia? É claro que não, é uma gripezinha”, dizem. O que rivaliza com o Terceiro Reich é o capital com seu profundo desinteresse pela vida, transformada em objeto de criação de lucro. Carreatas pelas cidades exigem das autoridades a flexibilização, a volta ao trabalho no instante em que inicia-se uma curva de inclinação fatal: é sempre a mesma empresa de interminável destruição tentando ditar as regras do jogo político para todos sem saber que ao permitir que o vírus mate os homens, mata a sí própria.

Danowski preocupa-se com a negação da indústria alimentar que cria seus campos de invisibilidade, eu me preocupo com a negação desta indústria da morte em andamento, essa capacidade do vírus de matar combinada com a omissão das autoridades, verdadeira tragédia em escala planetária que produz vítimas pelo atraso das mobilizações governamentais. Em cada continente, o vírus elege um país como epicentro: na Ásia, a China; na América do Norte, os Estados Unidos. Será o Brasil o epicentro da América Latina?

O Presidente e parcela da classe média de extrema direita revelaram-se profissionais da negação. O primeiro porque negligencia a força da pandemia “é uma gripezinha” e a classe média de extrema direita nega o vírus em função da necessidade de manter seus negócios. Nenhum deles reconhecem que estão no caminho de um vírus que provocou milhares de mortos por onde passou: quantos milhões ainda morrerão  até que os governos se deem conta que pela omissão também são perpetradores dessa mortandade? Quando foi que esqueceram que, em guerra, organiza-se uma economia de guerra?

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                                                                                               Imagem de Gerd Altmann por Pixabay 

 

Muitos dos que negam a mortandade do coronavírus o fazem por não suportarem pensar que suas vidas precisam de uma mudança radical. Para enfrentar a pandemia, uma mudança radical é exigida de imediato e que enfrenta a resistência de empresários e micro-empresários: o isolamento, o abandono radical da atividade laboral “somos todos negacionistas. Quem seria capaz de receber de frente e de peito aberto todas as desgraças do mundo?” diz Danowski. Lembramos que os enfermeiros e médicos são também prisioneiros desse sofrimento e como os prisioneiros dos campos nazistas, terão de encontrar algum modo de sobreviver psiquicamente a tamanha mortandade que está por vir, aquilo que Primo Levi, em “É isto é um homem”  chama de batalha entre o sonho e a vigília.

O modo de enfrentamento do coronavírus pelo Presidente e seus apoiadores de extrema direita, felizmente, é diverso da equipe de governo. Danowski associa alguns afetos que a extrema direita reúne que são responsáveis pela negação que nutrem pela pandemia: loucura, ódio à ciência, indiferença às mortes, desprezo pela cultura e ciência mas principalmente, uma pulsão de morte fascista marcada pelos seus gestos abjetos de incentivar o povo a aglomeração. E é notável que existam hordas de pessoas que celebrem esta ignorância. Denowski encerra seu texto com a frase de John Muir, percursor do ativismo ecológico: “quando chegar a hora de uma guerra entre as espécies, estarei do lado dos ursos”. De que lado você acha que está a extrema direita que manda às ruas seus conterrâneos?

Jorge Barcellos é historiador, Mestre e Doutor em Educação. Mantem a página jorgebarcellos.pro.br

 

Pois bem, a guerra! (Por Jorge Barcellos)

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  Imagem de Łukasz Dyłka por Pixabay 

 

No dia 15 de janeiro de 1999, o coletivo anarquista Tiqqun publica um manifesto em que resume o programa de uma luta social contra a desigualdade dos povos. A emergência da pandemia do coronavírus exige sua atualização. Ela seria mais ou menos a seguinte.

Precisamos retornar aos princípios. Estamos em guerra contra um vírus mortal. Deriva dessa consciência nossa ação sanitária. Quando um vírus vem para nos arruinar, devemos lhe impor o mesmo movimento, priva-lo de nossa presença “não limpamos uma casa que desmorona”. O equilíbrio entre economia e reclusão está fora de questão, a impotência da economia não está em discussão, valem as vidas.

Tudo que colabora para a morte do vírus é bom. O mundo do vírus espetáculo, por outro lado, não é bom quando sobrecarregado de informação. O mistério da efetividade do vírus está no fato de que ele é um nada “ativo”, algo microscópico capaz de sobreviver nove dias sob algumas superfícies, o metal e o plástico, principalmente. O vírus vive de nossa capacidade de não distinguir o que é prioritário do que é secundário, de que a vida importa mais do que a economia “a indistinção é seu reino, a indiferença seu poder”. Isso satisfaz o vírus: capitalistas pedindo a volta do comércio, que leva a aglomerações e mata. A indiferença dos capitalistas para com seus trabalhadores é fonte de poder do vírus.

O vírus quer que o ser retorne ao nada, a morte. O isolamento absoluto mata o vírus. Um mínimo de circulação dá oxigênio ao vírus, que depois retira do cidadão, nos casos graves de pneumonia, o ar que mata suas vítimas. A questão não é conciliar combate ao vírus e atividade econômica, “isso não depende”, não há opção entre “uma” e “outra”, mas entre “uma” ou “outra”. Não há opção.

Capitalistas que usam o argumento de que não adianta viver sem emprego estão no mesmo lugar dos cientistas que defendem isolamento somente para os casos mais graves, tudo isso são formas da intolerância em perder a economia. Aqueles que se vangloriam de salvar a nação com os empregos que oferecem são incapazes de organizar passeatas fora de seus carros chiques e sem máscaras, pois eles no fundo, também morrem de medo de... morrer.

O vírus é novo e estamos o conhecendo, como o estrategista que busca conhecer o inimigo. Mas nosso desconhecimento não deve servir de álibi para o capital, para os empresários medíocres que apenas se preocupam com seus lucros e o valor de suas ações nas bolsas. Até agora sabemos que isolamento incrementa a redução do avanço da morte no tempo, mas que isto é importante porque assim, o sistema de saúde sobrevive, não morre junto conosco. Precisamos dele para deixar para nossos filhos.

O vírus não é nossa primeira catástrofe, ele não suspendeu o “curso normal das coisas”. Vamos inverter a questão. É nossa vida ordinária que era uma catástrofe, econômica e social, com a desigualdade, a pobreza e a exclusão social. Seu encadeamento é que produziu o coronavirus, ele apenas iluminou nossa trágica existência e nos apontou que nesse caminho de exploração de riqueza, se expropriamos os habitats, novos vírus virão.

 

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                                                                                               Imagem de Colin Behrens por Pixabay 

 

Toda a história se resume a isto, ao momento em que uma sociedade, ao se expandir como câncer, se vê sitiada pelo mal que ajudou a criar, forma da natureza retomar o seu controle sobre sua criação, no caso, nós. Pois agimos como se não fôssemos filhos de alguém, nossa filiação exige o respeito à natureza, mas nossa constelação social dela quer se apropriar e retirar riqueza “É conveniente ter um panteão”, diz Tiqqun, é conveniente ter veneração pelos ancestrais “a verdade sempre disse a mesma coisa de mil maneiras”. Quando o filósofo Jean Baudrillard fala que as coisas tem essa capacidade de se “vingar” quando chega a hora, significa que a natureza é capaz de tempos em tempos por todos no mesmo lugar, os confrontar com sua finitude. Chegada o vírus: “você sabe com quem está falando?”

Alguns acham que não é necessária quarentena intensiva “Eles serão punidos por isso. Eles não escapam da verdade, enquanto a verdade lhes escapa. Eles não a enterram enquanto ela os enterrará”diz Tqqun. Essa é a metafísica crítica de nossos tempos que nos auxilia a entender o que está acontecendo e a fazer uma revolta, a de  retomar o nosso mundo, pois “este mundo precisa de verdade, não de consolações”. Quem acha que devemos voltar à normalidade é a dominação capitalista, a quem devemos criticas, à servidão que ainda paira entre nós, que quer-nos escravos... “felizes”. Todos querem viver, enquanto esses que fazem carreatas no interior de seus carros de luxo só “perseguem os destinos da morte. Inclusive, eles querem se repousar e deixam filhos”.

A natureza não é mercadoria, assim como o homem não o é. Se a natureza é uma espécie de segunda alma humana “mais bela e mais legítima que a primeira, deveríamos nos dobrar a sua autoridade”. Como o câncer que faz o homem desmoronar, o vírus também o faz em pouco tempo “os homens são responsáveis pelo mundo que eles não criaram”, definição exata para o capital, esse mundo criado independente de nossa vontade e que nos organiza e nos impõe consequências, “daí a guerra”, finaliza Tiqqun.

“Felicidade nunca foi sinônimo de paz”, especialmente em tempos de coronavírus. Milhares de estudos e artigos – inclusive este – tentando compreendê-lo, dialogar com ele mas “o inimigo não tem a inteligência das palavras, o inimigo as pisoteia”.  Para voltarmos à felicidade precisamos defender uma ideia ofensiva, precisamos da “arte de converter o sofrimento em força”. Somos sensíveis e por isso sofremos: nada disso, somos sensíveis e por isso agimos.

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                                                                                           Imagem de Parentingupstream por Pixabay   

 

Os capitalistas de plantão e o vírus insistem na mesma ladainha: a vida neste tempo é um bem de pouco valor. Todos morrem. Porque alguns não neste exato momento? Não é o que defende o Presidente e empresários nacionais? “É que as forças de aniquilamento estão engajadas em uma via muito distinta daquela onde se esperaria encontrá-la”, diz Tqqun.

Estamos em combate a um vírus mortal e parte da sociedade comportam-se como jovens imbecis, pessoas torpes, em apelo incessante a restrição mental “Aqueles que não compreendem hoje já empregaram toda sua força ontem, justamente para não compreender. Em seu foro interior, o homem já está ciente do estado do mundo”. Estado do mundo do capital é exatamente esse, no qual uma parcela é lixo, descartável, pois só a economia importa. Triste.

Estamos vivendo uma nova era. Voltamos ao lar, ao convívio da família, isso é por meio do medo que o coronavirus provoca, o medo da morte. Mas há algo de promissor aí “Cada novo modo de ser arruína o modo de ser precedente e só então, sobre as ruinas do antigo, que o novo começa”. Isto é chamado de as “dores do parto”. Exatamente porque está sendo arruinado nosso modo de ser no mundo que podemos mudar diversas coisas.

Vivemos uma guerra que não foi precedida de nenhuma declaração. O vírus simplesmente se instalou entre nós para nos aniquilar, aniquilar “os mais vivos dentre seus filhos” não é exatamente a definição de velhice, que o vírus vitima em primeiro lugar, os mais vivos não são ao final, os mais sábios e velhos?

O pais está mais uma vez dividido graças a seu Presidente. Dois campos fazem parte da guerra, já que o capital desejaria que existisse apenas um campo, o seu. Daí o apelo ao retorno às ruas, como nas guerras partidos buscam uma paz militar. Se voltarmos às ruas estaremos fora da guerra, e sem ela, não seremos nada. Não se luta contra um vírus e um verme ao mesmo tempo, frase que circula nas redes sociais ”Eles (os vermes) devem ser afastados para aclarar o alvo”, a mentira só pode ser vencida pela verdade, que junta todos “nós somos nó e nossos irmãos”, diz Tiqqun.

Só sairemos desta guerra se considerarmos os preceitos médicos de isolamento radical como nossa verdade “a inteligência deve ser tornar um assunto coletivo”.  

Jorge Barcellos é Historiador, Mestre e Doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e “A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard “(Editora Homo Plásticus,2018), é colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Carta Maior, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.

Mais razão! Mais razão! (por Jorge Barcellos)

 

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Precisamos urgentemente da razão. Deixar a emoção de lado, nossas crenças sem comprovação científica. Não há opção, ou seguimos o que mandam os médicos ou muitos irão morrer. Não deve haver aglomeração, e isto é uma recomendação que não se negocia. No domingo (15/3), a imagem de manifestantes nas ruas das cidades negando a realidade do Coronavírus e as recomendações dos médicos para preservar o isolamento foi um momento de desrazão. Convocados pelo Presidente, que após, teria desconvocado,  as passeatas ocorreram, com maior ou menor público por todo o país. Essa exposição desnecessária, contrária a política sensata de isolamento, revela o quanto parte da população ainda trata a doença com preconceitos, naquilo que os psicanalistas denominam de fase de 'negação', de não aceitação de que o coronavirus encontra-se entre nós e que somos todos responsáveis pela sua disseminação. Esse ato só pode acontecer pelo sucesso da difusão para parcela da sociedade brasileira, de um pensamento que rejeita tudo aquilo que vem da universidade, da intelectualidade e que merece rejeição por ser baseado em preconceitos.

Mas o episódio também embra o final da segunda temporada do seriado House, “No Reason”. A ideia de que hoje no país há pessoas que não tem a mesma forma de ver o mundo, que parecem não viver a mesma realidade de emergência, encontra equivalente no episódio a imagem de House, personagem do seriado homônimo. No episódio, House é o paciente que levou um tiro e que divide um quarto de UTI com seu agressor. Quando o médico  percebe que está tendo alucinações e pergunta a visão imaginária de seu agressor como agir no mundo real, recebe a resposta surpreendente “Você continua jogando fora suas ideias, como sempre faz, mas, se elas se baseiam em premissas falsas, sua equipe mostrará isso”.

A cena ilustra a ideia de que queremos que nossos argumentos sejam objetivos e baseados em fatos, exatamente como queremos com a epidemia do Coronavírus. E as autoridades de plantão estão fazendo isso, adotando as medidas restritivas necessárias e realizando as campanhas educativas que precisamos baseados em fatos. Mas no entanto, como House, parece que uma parte da população prefere a alucinação, o uso de premissas sem fundamento em vez do raciocínio lógico. A passeata mostrou que existem ainda pessoas que afirmam que o vírus não existe ou que se consideram inalcançáveis pelo Coronavírus. Estes comportamentos são baseados em crenças e não em premissas verdadeiras e precisam serem combatidos a exaustão.

Segundo analistas, a ignorância que leva parte da população a duvidar do fato de que as medidas são mesmo necessárias aprofundou-se devido a emergência de uma cultura anti-intelectualista no país. Essas pessoas do povo provavelmente continuarão agindo nessa ilusão, seu comportamento é nefasto para as políticas públicas em andamento, mas a razão precisa dominar. No seriado, alucinado ou não, House defende suas ideias com base em suposições que vão sendo colocadas seguindo o método científico. A ciência ainda tem muitas dúvidas quanto a natureza do vírus, mas aprendemos o suficiente para saber que ele é perigoso, violento e letal e as medidas são necessárias. E isso, ninguém tem direito de negar.  

O futuro da democracia no Brasil (por Jorge Barcellos)

 

Em 28 de setembro de 1996, o cientista político Norbert Lechner (Karisruhe, Alemanha, 1939 – Santiago, Chile, 2004) realizou no México a conferência “Democracia e futuro” no Congresso Nacional de Ciência Política. Vinte anos depois, suas reflexões são importantes para a análise da situação política vivida no Brasil. Tratava-se então de sua participação numa mesa redonda que colocava a questão de porquê se tematizar a democracia naquele tempo. Para Lechner, havia dois tipos de países na América Latina: aqueles que queriam ser democrático se aqueles que lutavam por sê-lo. É claro que Lechner estava também preocupado com os obstáculos e condições da democracia a nível mundial e naquela época, já haviam estudiosos falando sobre os processos de consolidação democrática.

O primeiro ponto de interesse para o debate brasileiro apontado naquela época por Lechner era a existência de uma cidadania informada. Com isto queria dizer que era necessário, por exemplo, a existência de atores “antissistema”, isto é, com uma crítica radical às condições de exploração e com força social significativa. Este parece ser o primeiro ponto de fraqueza da democracia atual: a ascensão de grupos conservadores, isto é, defensores de ideais tradicionais, muitas vezes retrógrados, parece apontar para o fato de que aqueles que são “a-favor-do-sistema”, diga-se, de opressão, estão em maior número e, portanto, a democracia brasileira, a partir desta concepção, estaria fragilizada.

 

O segundo ponto de interesse da conferência de Lechner é que aponta diversos níveis de consolidação democrática: um nível constitucional, um nível representativo do sistema de partidos, um nível do comportamento dos atores e um nível mais básico de cultura política. Esse apontamento parece ser essencial para a compreensão da crise democrática brasileira: ainda que tenhamos conquistado a nível constitucional, desde a Carta Magna de 1988, um notável avanço em relação ao regime militar, aparentemente, os vinte anos seguintes não foram suficientes para conquistas do sistema de partidos, do comportamento de atores e da cultura política. A razão é que, não apenas a imersão de inúmeros partidos e atores na corrupção, foi a própria cultura política nacional que se tornou um fardo para o cidadão.

O desencanto político foi a consequência direta; a ascensão da direita, a consequência indireta. “Chegando a democracia, ao mesmo tempo sentimos que não chegamos, que a democracia se afasta como uma fata Morgana e isso é o que produz ou provoca esse tipo de mal-estar que temos em muitos países da américa latina (...)essa situação em que descobrimos que a democracia não está determinada, não está definida de uma vez para sempre: a democracia é um movimento histórico que cujo sentido tem de ser atualizado permanentemente” (Lechner, N. Subjetividad y politica, p. 39). Lechner tira daí o problema principal da análise teórica dos anos 90: a oscilação entre uma democracia voltada para o futuro e outra, que tem lugar no aqui e agora.

 

Nesse contexto, a ascensão de Michel Temer ao poder, e todo o pacote reformista em andamento, em diversas esferas governamentais e estados diferentes alinhados ao projeto do PMDB, representam um processo de nova transição política: mas Lechner afirma que sempre há uma memória do passado que tem um peso mais ou menos importante nesses processos de transição. Do ponto de vista do autor, a transição a que se refere é a do autoritarismo em direção à democracia. Mas quando parte das condições do exercício democrático está lançada, o que significam os processos de desconstrução, de desdemocratização em andamento? Pois estamos vivendo uma zona difícil entre a democracia como êxtase de direitos e o seu contrário, baseado na supressão de direitos capitaneados pelo próprio estado.

No quadro atual, podemos imaginar um futuro democrático para o pais? “Essa dimensão de futuro da democracia se contradiz com uma característica essencial de nossa época, que é o apagamento do futuro”. Hoje, olhando a conjuntura política, o traço essencial de nossa época, ao contrário, parece ser o apagamento do passado: não há como não caracterizar esse processo de desmonte de direitos como apagamento de direitos; não há como não identificar os atores em reação como os detentores da memória do passado. Estamos jogados num universo de lutas.

 

Para Lechner, no contexto democrático dizemos que agimos segundo regras estabelecidas. Mas o que acontece quando, a todo momento, é o próprio governo (nos três níveis) que propõe alterações das “regras do jogo”, das regras constitucionais? O que acontece quando, o mundo que era para ser compartilhado começa a ser visto como algo dividido? Para Lechner, significa que perdemos o terreno comum com que enfrentávamos as incertezas. Não é exatamente esta a posição no acirramento da divisão política entre aqueles que governam e aqueles que são governados? Agora, aqueles que tem o poder colaboram na divisão dos “nós contra eles”, como assinala o sociólogo Richard Sennet.

A grande tese de Lechner com a qual concordamos é que a democracia também vive de paixões e virtudes. Ela foi por muito tempo a promessa de “um mundo melhor”. Mas o que acontece quando vivemos no pior dos mundos? Para Lechner, o fato de que a democracia é voltada para o futuro é que faz o tempo ser redimensionado. Essa questão, que é central no pensamento do filósofo Paul Virilio, aponta para os efeitos do caráter vertiginoso do tempo. Para Virilio, o problema é que vivemos o tempo intensamente; para Lechner, o problema é que justamente por vivermos intensamente o presente, já não resta nada para o futuro. A nossa perspectiva de futuro sofre uma retração.

 

Se perdemos a capacidade inventiva da política, se perdemos a capacidade de imaginar o futuro, isto significa que só vivemos para resolver os problemas do presente “todos os problemas se situam no presente, aparecem aqui e agora, o que leva a um tipo de sobrecarga que já não se pode diferenciar dos problemas do amanhã. “. Para Lechner, estamos perdendo a capacidade de imaginar alternativas. Estamos perdendo a capacidade de usar a democracia para construir o futuro. “Ou traímos o horizonte do futuro e tratamos de pensar e de fazer uma democracia sem promessas de futuro, ou tratamos de devolver a política sua capacidade de oferecer um horizonte”.

Jorge Barcellos é historiador, Mestre e Doutor em Educação. È autor de Educação e Poder Legislativo (Aedos Editora, 2014). Mantém a coluna Democracia e Politica do Jornal O Estado de Direito. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre. É colaborador do Jornal Zero Hora, Le Monde Diplomatique Brasil, Folha de São Paulo e publica nas plataformas Medium, LaMula e Sapo.   

Porque os servidores municipais devem temer Marquezan?

 

Por Jorge Barcellos. Doutor em Educação

As eleições estão chegando e os servidores municipais deverão escolher se apoiam Sebastião Melo, um negociador, ou Nelson Marquezan, que já declarou que odeia o servidor público.

Sou servidor municipal antes de ser de esquerda. Me preocupa cumprir minha função, que faço com prazer, pelo privilégio de ser servidor público. Você constrói sua vida na carreira pública, abandona outras oportunidades com a promessa de que você terá condições de vida digna. Mas isso sempre pode mudar de acordo com o administrador.

Já apontei que duas chagas perseguem os servidores públicos: a ideia de que os servidores são o bode expiatório da sociedade, isto é, o sujeito que leva a culpa de todos os males sociais e a ideia de que o servidor é escravo da sociedade, isto é, de que é um objeto a ser explorado até as vísceras  pela sociedade. Nem um, nem outro, o servidor é um trabalhador, tem direitos e deveres como qualquer cidadão. O servidor é o responsável por políticas públicas, é quem está na ponta do processo. Quanto mais condições tiver para exercer suas obrigações, melhor para a sociedade. Isto inclui, como é importante para qualquer trabalhador, que as obrigações do Estado para com o servidor também sejam cumpridas.

Nem sempre isso acontece. Para os servidores municipais, sempre que um novo Prefeito assume, gera-se a angústia: continuaram garantidas as condições de segurança do exercício de suas funções? Receberá seu salário como qualquer trabalhador? Terá respeitado seu direito á férias, licenças-saúde, que fazem parte dos direitos do trabalho? É só olhar o que acontece neste exato momento no governo Sartori: parcelamento dos salários, desrespeito aos servidores, luta do governo em privatizar organismos, luta pela retirada dos direitos.

Trabalho a 30 anos na função pública: criei projetos que foram reconhecidos por entidades nacionais como de grande valor. Foram premiados. É o meu trabalho. Isso justifica minha função. Mas isso pode sempre mudar. O trabalho que realizo pode ser retirado pela simples vontade do administrador. Chamamos isso de hierarquia. È igual ao exercito, o principio de obediência exceto nos casos de manifestadamente ilegais. Mas podem ser injustas. Podem desconsiderar a história. Podem desconsiderar o valor do servidor. Basta que um Prefeito acredite que o servidor é uma coisa. Basta que um administrador critique direitos, desvalorize as iniciativas dos servidores, para que um servidor seja jogado no lixo da administração pública. Chama-se isso de perseguição.  

O cargo de Prefeito é o mais importante para o equilíbrio do serviço municipal. A ideia de governo de um prefeito dita a lei: se um prefeito tem como base a busca do consenso, sua administração colherá os frutos da parceria com seus servidores; se um prefeito tem como base a busca do conflito, a raiva, isso raramente acontece. As relações tendem a ser tensas. A sociedade sente. Isso não é bom.

O caráter de um prefeito preocupa os servidores. A razão é que um prefeito tem muito poder, garantido pela Lei Orgânica Municipal. O art. 73 da LOM garante ao Prefeito a iniciativa em propostas de Emenda à Lei Orgânica, o que significa, que tem o poder de mudar, podendo propor a retirada de direitos dos servidores. Isso acontece quando um Prefeito acredita que direitos dos trabalhadores são o sinônimo de privilégios. Quando um Prefeito busca garantir o equilíbrio entre defesa de direitos e obrigações, isso não acontece. Direitos não são privilégios: os primeiros são conquistados na luta e reconhecimento do valor do trabalho do servidor; os segundos são conquistados na luta desigual por oportunidades. Uns são a medida adequada, o outro, o excesso. Privilégio é um juiz de salário milionário receber ainda auxilio moradia; direito é um servidor poder afastar-se por motivo de doença.

O Art. 76 da LOM garante que apenas poderá ser modificado o Estatuto dos Servidores Públicos por ampla maioria. Antes, isso era até difícil para muitos prefeitos, que não tinham toda a base parlamentar que necessitavam. Quando um Prefeito, por acordos e conchavos, conquista a maioria, alterações em leis complementares se tornam mais fáceis e a resistência dos servidores, mais difícil. Isso pode promover inúmeras perdas para as diversas categorias do funcionalismo público.

Mas é a Seção V , no artigo 94 da Lei Orgânica que trata das atribuições privativas do Prefeito, que a coisa complica para os servidores. O item IV afirma que o Prefeito pode “ dispor sobre a estrutura, a organização e o funcionamento da administração municipal”, quer dizer, pode extinguir secretarias, promover mudanças estruturais gerais, o que pode incluir, no limite, a venda de empresas públicas, como no caso de Porto Alegre, a  Procempa, a Carris e o DMAE. E quem perde são seus servidores, por demissões de pessoas experiêntes, e a sociedade, que vê privatizado seu patrimônio. 

Talvez, para os servidores públicos, o pior esteja contido no item VII do art. 94. Ali se lê no item” b” que o Prefeito pode  promover a iniciativa de projetos de lei que disponham sobre “ regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria dos servidores públicos”. Quer dizer, pode alterar regime jurídico, isto é, se os servidores seguirão de agora em diante o Regime Estatutário ou CLT, se terão estabilidade ou não, e a própria aposentadoria. Felizmente, enquanto o Art. 96 e seus itens não forem alterados, o servidor ainda tem a proteção e serão considerados crimes de responsabilidades aqueles que atentem contra “a probidade da administração” e “o exercício de direitos políticos, individuais e sociais”.    

O capítulo IV, que trata dos servidores municipais, sempre é o principal alvo de Prefeitos que veem os servidores públicos como “vagabundos”, como “casta de privilegiados”. A ideia de caça aos marajás faz parte do imaginário desses prefeitos que veem direitos como privilégios, eles  tentarão de todas as maneiras retirar direitos sob o argumento de que isso faz bem a coisa pública. Não faz. Servidor valorizado beneficia a sociedade, servidor sem direito algum prejudica. Qualquer trabalhador sabe do que estou falando.

Que direitos pode tentar extirpar um prefeito que acha que o servidor é vagabundo? Vários. Ele pode acreditar, ao contrário do que o Art. 30 determina, que o concurso público é apenas uma forma de seleção, e não uma forma de acesso a cargos públicos. Ele pode acreditar que não é necessária estabilidade, pode acreditar que o regime dos servidores públicos deve ser igual ou inferir a iniciativa privada. A estabilidade foi criada com um objetivo: proteger a administração pública do mal administrador. A estabilidade é a garantia que o estado tem de que seus integrantes não sofrerão influência de maus administradores. Quando a estabilidade é perdida, qualquer um teme perder o emprego e cede as exigência do administrador de plantão. E muitas podem ser ilegais. Esse é o conflito, é para isso que existe a proteção do servidor.

Esse é o problema: quando um Prefeito é oriundo dos setores empresariais, quando um prefeito tem ligações muito grandes como capital, ele não consegue reconhecer o valor dos servidores. As vezes, em sua campanha isso fica visível: o servidor público é sempre o sujeito ausente dos programas, dos cenas da propaganda politica. É curioso: o candidato a prefeito fala sempre nos inúmeros serviços que deseja prestar a cidade como se fosse serviços prestados por duendes ou fadas madrinhas, ou seres mitologicos, quase inexistentes. Mas eles são reais, cidadãos com direitos e obrigações.E que merecem serem respeitados.   

O art. 31 estabelece inúmeros direitos aos servidores públicos. Já disse que isso serve para que os servidores, com estabilidade, não sejam influenciados em seu trabalho pela arrogância dos administradores de plantão. A estabilidade é benéfica a administração pública, proteger o servidor significa proteger a Prefeitura dos maus políticos, dos maus administradores. Por isso a lei garante diversos direitos como as licenças para o bem estar funcional, como licença –maternidade e licença- paternidade. Na empresa privada, isso é um absurdo, e muitos empresários dispensar servidores assim que descobrem a gravidez de suas funcionárias. O modelo é sempre o da organização do trabalho na China, que para administradores ultraneoliberais, deve ser o modelo com o qual deve ser gerida a administração pública. Para estes prefeitos, é inadissivel, por exemplo, que a lei garanta  horas de trabalho limitadas a seis horas quando recentemente, uma autoridade empresarial defendeu o trabalho de 80 horas semanais;  quaisquer vantagens por pagamento por trabalho em horários diversos também é inconcebível. Para esse tipo de gestor, qualquer acréscimo remuneratório atenta contra o principio do lucro.

Mas aí há o equivoco. A administração pública tem outros fins, diversos da empresa privada. Os servidores lutam pela cidadania, pela prestação de serviços; o capitalista, pelo lucro.   Por exemplo, os servidores públicos tem como conquista por quinquênio trabalhado, a licença-premio. Um Prefeito pode acreditar que isso é um excesso e elaborar um projeto de lei que retira o direito da Lei Organica e do Estatuto. Se ele tiver maioria, ele pode conseguir sucesso.  Ele pode acreditar que o 13% salário constitui um privilégio e pode querer fazer tudo para retirar este direito. Ele pode querer mexer nas alíquotas de contribuição para a aposentadoria, aumentando a participação dos servidores.

Na minha opinião, Marquezan, ao contrário de Melo, enquadra-se neste perfil. Ele terá amplos poderes. Muitos, e todos dizem principalmente da sua capacidade de propor alterações nos direitos dos servidores públicos, conquistados após anos de luta. Por isso, neste domingo, o servidor público deve estar consciente em quem votar. Para mim, na minha opinião, Marquezan tem uma história que dá medo, muito medo.   

A esquerda e a eleição em Porto Alegre

 

Por Jorge Barcellos, Doutor em Educação 

 

As vésperas das eleições, a avaliação positiva das candidaturas de esquerda pelas pesquisas de opinião coloca a questão: porque não houve polarização? A cidade já teve grandes ciclos de racha político: PTB versus anti-PTB nos anos 50 e PT versus anti PT nos anos 90. Agora, com dois partidos de esquerda na liderança, PSOL e PT, o que mudou?

 

Minha explicação é que três fatores explicam a mudança. O primeiro foi a incapacidade da direita em sustentar no imaginário politico da cidade o “antipetismo”. Isso aconteceu por uma série de razões com a ascensão da politica neoliberal do governo Michel Temer, a crise do governo de José Ivo Sartori, ambos mostrando que o projeto do PMDB na prática, é bem distante das propostas no período eleitoral: quando no poder, o PMDB se revela como uma máquina de massacar direitos.

 

A vantagem de saída não é garantia de chegada e há muito caminho a ser trilhado para a esquerda. Ela terá de enfrentar, para começo de conversa, sua incapacidade de perceber a necessidade de abdicar das candidaturas próprias em benefício de uma união de esquerdas, preferindo PSOL e PT, cada uma, “tentar a sorte” em caminhada própria. Sebastião Melo dispara, com suas alianças, no tempo disponível no horário eletorial e ainda que o próprio debate possa mudar em parte esse contexto, a tendência é que a diferença entre o candidato de situação e o da oposição diminua ao longo do horário eleitoral. 

 

A verdade é que as oposições ao atual governo municipal estavam mais voltadas para sí próprias desde o inicio do processo eleitoral e pagam um preço por isso: para o PT, tratava-se de uma bandeira de honra mudar o sentido da curva descendente dos anos 2000; para o PCdoB, tratava-se de uma questão de honra transferir o capital político de sua principal estrela, Manuela, derrotada nas eleições de 2008. O segundo é o fracasso da mudança ocorrida no discurso de Fogaça (2008) para Fortunati (2012): saiu o discurso da defesa da “cidade como um todo” (NOLL,DIAS & KRAUSE, 2012) e entrou o discurso do “Eu amo Porto Alegre” e o que restou? Uma cidade em pedaços. Para mim este discurso é ideologia em estado puro.

 Porquê? Claro que todos gostamos da cidade, etc e tal, mas o que é era amor dito dequela forma? Era, na concepção de Slavoj Zizek, um ato simbólico violento: ele não dizia “Eu amo TODOS vocês” mas selecionava a partir um ponto de vista que dizia “Eu amo você ACIMA de qualquer coisa”, o que é profundamente ideológico, já que do ponto de vista da esquerda, é a negação do ideal de solidariedade mundial, da defesa da luta conjunta com os povos excluídos, como as populações marginalizadas no Terceiro Mundo, etc, etc. Era ideológico porque nos diz; nós não nos preocupamos, não existe nada ALÉM de Porto Alegre. É isso? Claro que não! As transformações do contexto nacional e estadual importam, e este deve ser o mote das candidaturas de esquerda, mostrar que o discurso de Fortunati estava errado desde o principio. Sinto dizer aos apaixonados pela capital como eu que não! A esquerda, por sua vez, frente a um discurso tão frágil mas ideologicamente tão poderoso, perdeu porque foi incapaz de criar um contra-discurso original: qual foi a aposta de Manuela se não copiar o primeiro discurso de Fogaça “fica o que está bom, muda o que não está” que na sua versão se transformou em “ muda isso, continua isso?”Qual foi a aposta de Villa se não um “é preciso crer!”? Nada mais frágil!Por isso construir um discurso que vincule a cidadania é prioridade para esquerda para não repetir os erros da eleição passada.

 

O terceiro é a adoção de uma estratégia de esquerda por um governo de esquerda, isto é, não fazer concessões. È a estrategia do PSOL, que não abriu mão da cabeça de chapa e vice.  A esquerda cedeu a sedução do centro desde que Hobsbawn viu que na luta politica inglesa dos anos 70 que o neoliberalismo estava vencendo porque sequer o Partido Trabalhista inglês estava conseguindo sair de sua estagnação. Ele previu que somente transformando-o em um amplo partido popular se teria alguma chance de combater o thatcherismo. Ele então propôs as quatro metas para o Partido Trabalhista à epoca: convencer as pessoas de que elas queriam o que o Partido representava; mostrar que a política do Partido Trabalhista não era apenas desejável, mas realista; que o Partido Trabalhista representava efetivamente todos os trabalhadores e que o trabalhismo tinha esperança na Inglaterra.

 

 

Em Porto Alegre, na ultima eleição, o PDT adiantou-se a esquerda e adotou exatamente esta estratégia, a mesma que Hobsbawn queria para a esquerda e teve sucesso e chegou ao poder. Por isso, para a esquerda hoje, em Porto Alegre, às vésperas da eleição, só resta como saída a última estratégia sugerida por Hobsbawn, anos depois, em 1987: vendo que a posição do Partido estava melhorando, mas não o suficiente, disse que a única opção era “votar no candidato que estiver mais bem colocado para afastar o candidato conservador.” Hoje, a esquerda disputando entre sí o eleitor não é a melhor opção da esquerda – vide a tentativa vergonhosa e inutil de Manuela na eleição passada de aproximação ao PP, que faria Marx, Lenin e Trostsky & Cia revirarem-se no túmulo várias e várias vezes só de ódio. Mas, talvez, frente as próximas pesquisas, a única chance de combater o continuísmo na Prefeitura será o abandono de um dos candidatos de esquerda a disputa, com a transferência de seus votos para o que estiver melhor colocado. 

Os movimentos invisíveis do universo escolar

 

Aprendemos com Suely Rolnik em sua obra Cartografia Sentimental da América (Sulina) a procurar isto na escola: o desejo de aprender, o processo da produção de universos psico-sociais na escola. Aqui, o próprio movimento de descrição da produção desses universos escolares nada mais é do que a versão pedagógico-rolniquiana da produção do desejo escolar. Seguindo o exemplo de Rolnik, você é conduzido por um câmera neste processo. Vê uma sala de aula, e nela, um professor com sua turma de alunos. Os alunos trocam sorrisos, olhares. É a primeira aula deste professor. É isso que você vê com o  olhar, mas você tem um corpo vibrátil que é tocado pelo invisível. Você sabe que naquela primeira aula já está em ação o primeiro movimento do desejo.

No encontro, professores e alunos tem a capacidade de se afetar e serem afetados pela sua simples presença.  Movimentos de atração e repulsa na escola, que não deixam de produzir efeitos: os alunos são tomados por uma mistura de afetos, sentimentais, cognitivos. E teu corpo vibrátil vai mais longe ele sabe que é o próprio nascimento das intensidades que está ocorrendo, traçando movimentos de desejo no espaço de sala de aula. Você ouve os alunos “hi, lá vem mais uma professora novata”, “xii, ela parece bem chata”. Os primeiros instantes  de aula não passam desse pequeno ensaio que os afetos na sala de aula fazem para se expressar, desajeitadamente, expressos e gestos. “É que,  você sabe, intensidades buscam formar uma máscara para se apresentarem, se “simularem”; sua exteriorização depende de elas tomarem corpo em matérias de expressão. Afetos só ganham espessura real quando se efetuam. “(ROLNIK, 1989 p. 16).

É preciso imaginar um personagem, que será a própria imagem de professor, para exploração. Imaginemos uma cidade comum do Brasil, uma grande metrópole nos dias de hoje. Você percebe que nosso professor, ao entrar em sala de aula, sente algo. Ele está numa escola de periferia, ou pode estar numa escola privada. Ele é o “aspirante à professor”, tem contornos definidos: ele acaba de sair da faculdade, está cheio de energia e com propostas inovadoras, planejou sua aula como deve ser, de acordo com as melhores teorias da aprendizagem.

Você percebe que são no fundo percursos muito simples. É uma intensidade, um envolvimento programático. De um lado, alguém que pensa que sabe como ensinar; de outro, alguém a espreita do que virá. Até o final do ano letivo, terão encontrado uma maneira de se entender. No campo invisível da relação aluno-professor, cada um fala à “alma do outro” para dizer: “teu programa faz sentido, tua matéria provoca interesse”. Ou não, e aí perdura a agressão pura  e simples ”nada do que planejas faz sentido para nós”. Se você estiver no primeiro caso, você será um “aspirante a professor que vinga”. Se você for o segundo caso, você será um “aspirante a professor que gora”.

 

Aonde produziu-se o momento da diferença que faz a o sucesso de um e o fracasso de outro? São justamente o traçado das intensidades – afetos – que se produziram o longo do trabalho conjunto. Para Deleuze & Guattari é o fato de que o primeiro professor soube estabelecer um plano de consistência, um caminho para os seus afetos e o os alunos se expressem. Ele foi capaz de construir um território comum.  Somente o corpo vibrátil, numa palavra, a intuição, é capaz de discernir entre os diversos processos de simulação – artifícios, intrigas, cenas – daqueles que colaboram na construção  de um território existencial em sala de aula.

Para  Guattari é preciso gerir os agenciamentos, ou seja, as matérias de expressão que tem lugar na sala de aula. O “aspirante a professor que gora” ou que fracassa, é justamente assim porque cristalizou  sua existência num determinado modelo de ser e ensinar. E isso ocorre justamente porque a formação universitária, que deveria ser uma abertura, tornou-se um prisão do qual não consegue se libertar: são ora os jeitos padronizados de ensinar, repertório  de procedimentos esqueléticos usados e abusados. Dura constatação: por mais que você se esforce, nada faz os alunos “sentirem-se em casa”.  Se você está com seus sentidos aguçados, percebe que há algo “invisível” neste processo que deve ser levado em conta:  é que  uma aula exerce movimentos de atração e repulsa, e a sala de aula, é ela própria, um território a conquistar . Ele tem uma inteligibilidade que exige que se faça um desenho.

Dá para concluir que nossa primeira personagem é feliz porque habita com  tranqüilidade  o espaço de sala de aula e você se dá conta de que nada adianta, nos tempos atuais, munir-se de armas dogmáticas para enfrentar as situações de ensino – elas são mascaras feitas para nos proteger que produzem o efeito contrário. Tais artifícios didáticos são apenas matéria de expressão para encobrir os afetos que carregamos: o medo de ensinar, a vontade de aprender.

 

Você pode no entanto, imaginar uma cena totalmente diferente. Numa cidade do interior , uma pequena escola distante de tudo e de todos começa o seu dia. Como na primeira escola imaginária, um professor inicia sua aula. O “aspirante à professor” conquista a atenção do s alunos, as intensidades que o atravessam são partículas de afeto que escapam do território familiar e surgem na sala de aula. Ele é um pai (ou mãe) para seus alunos.  Você desconfia então conclui que esse professor ainda não é o ideal. Ele não dá conta dos afetos que o conhecimento pode provocar, ao contrário, ele está vivendo de uma “máscara” que se beneficia de uma falta no seio das famílias: é um aspirante à professor que gora”. Quer dizer, que consegue um sucesso mas também um fracasso.

Nos tempos que correm, cada um de nós professores termina por utilizar-se de uma máscara para organizar seus afetos no campo de ensino. O aspirante `a professor pode ter sucesso ou fracassar. Se ele “grudar” na imagem de professor que imagina ideal, ele corre o risco  de se despedaçar neste processo.  É que para existir, é preciso ao contrário, estar em permanente comunicação com o meio ao redor, com nossos alunos, o que exige intuição e perspectiva de mudança no horizonte.  Se o professor insiste no modo de conduzir sua aula, , como se fosse sua essência,  ele se enrijece. Paradoxalmente, se o professor for capaz de se “desgrudar” do que aprendeu, dos vícios que a universidade possibilita e que ele não percebe, revela-se mais corajoso.  É uma corda bamba – é preciso abandonar o rosto de professor construído ao longo de anos, apresentar-se desterritorializado, ao contrário, para que as máscaras possam ir-se constituindo com o tempo de convívio para dar um plano de consistência para os afetos.  Não tem outro jeito para ensinar, é preciso “afinar-se” com a turma, estabelecer um plano de consistência, e só podemos fazer isso se soubermos libertamo-nos de nossas prisões.

 

 A principal lição disso tudo é que a escola é um espaço de territorialização e desterritorialização constante. O espaço escolar é antes de um espaço de conhecimento, um espaço de afetos. E eles precisam ser geridos. O sucesso ou o fracasso do ensino dependem disso.  Os exemplos deixam claro que as intensidades explodem na sala de aula, sem forma e sem substância e usam de certas matérias para se expressar – nossos jestos, trejeitos,conteúdos. Fazemos máscaras para suportar esse drama existencial que a escola possibilita, mas é preciso ter  em conta que trata-se de operar as intensidades no espaço escolar.

Ao final, os papéis que assumimos, os padrões que repetimos não passam de condutores de intensidades  e na medida em que deixam de ser bons condutores – você dá aula, mas ninguém está nem aí – eles não conseguem se efetuar.  Concluimos que a transmissão do conhecimento é permeada de afetos e a sala de aula nada mais é do que esse grande espaço do encontro. A lição de Rolnik é que se você não consegue se comunicar, efetuar sentido, tudo torna-se falso. O modo como conduzimo-nos no espaço escolar, a maneira como encaramos nossos alunos, tudo enfim são “máscaras”, artifício – a pergunta pelo verdadeiro professor que há sobre cada um de nós nada mais é do que uma falsa pergunta. A questão é se somos capazes de fazer uma comunicação, uma troca, fazer afetos passarem, criar uma aula com sentido.

Cinco anos do Massacre do Realengo

 

Surpreende a facilidade com que esquecemos as tragédias. Uma delas, provocada por Wellington Menezes de Oliveira, 24 anos, que no dia 7 de abril de 2011, uma quarta-feira, entrou armado na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro e atirou contra uma dezena de crianças foi um ato revoltante pela violência contra inocentes. Completou cinco anos e ninguém se lembrou. Mas ele deve inspirar reflexões sobre questões urgentes no campo das políticas públicas.A chacina ocorreu por volta das 8h30min da manhã e seu ato violento matou cerca de doze estudantes com idade entre 13 e 16 anos, e deixando mais de treze feridos. Oliveira foi interceptado por policiais, cometendo suicídio.

Cinco anos depois, ninguém mais lembra o episódio, mas ele ainda tem lições a nos ensinar. Em primeiro lugar, o ato revela a fragilidade das instituições escolares. Discussões sobre segurança nas escolas e adoção de uniforme escolar, recentemente debatidos pela imprensa, são necessidades urgentes a serem implementadas. Oliveira entrou armado numa escola pública onde o Estado é o responsável pela segurança. Como isso foi possível? Em segundo lugar, a fragilidade dos jovens que formamos. Educadores lutam há anos pela qualidade do ensino e pelo fortalecimento da formação dos jovens. Este é o papel da escola. Oliveira, ex-aluno, de alguma forma ainda não esclarecida, nutriu tamanho ódio pela escola que resultou em sua trágica ação. Saber que a instituição que cria o amor ao conhecimento termina por construir o seu exato oposto é pertubador.

Os educadores há algum tempo vem refletindo sobre a escalada aos extremos da violência na escola, produto dos tempos de perda de referências em que vivemos. Mas este crime acrescenta algo novo e para o qual a escola não está preparada: o êxtase da violência em estado puro. É bem verdade que o Estado, sempre acusado pelas suas deficiências, mostrou serviço: viu-se a corrida para o atendimento das vitimas e suas famílias. As primeiras cenas mostraram bombeiros, médicos e policiais integrados buscando cumprir seu papel, daí a necessidade de fortalecer as instituições públicas que dão assistência nestes momentos de dor. Este crime bárbaro deve servir a sociedade como a sombra de um fantasma. È algo simbólico no sentido mais forte.

Podemos deplorar a ação do assassino, mas se ficarmos só nisso então acabou. O problema é saber o que gera o ato violento de Oliveira, feito em parte, da situação de violência cotidiana que todos vivemos e que precisamos combater. É preciso fazer a genealogia desta violência, porque à violência brasileira das ruas vem anunciar-se esta sombra, a da violência contra escolas. Num país onde há conforto absoluto para uns, sabe-se que a produção da exclusão leva a loucura, recusa e negação que pode estar entre as causas que levaram Oliveira a realizar um ato perverso. Mas que perversões ainda maiores estão por vir do seio de nossa sociedade a partir do momento em que abandonamos a defesa dos valores universais? Para Paul Virilio, vivemos uma guerra planetária que ainda compreendemos pouco, mas que é caracterizada por um tipo de desintegração interna, efeito do poder que se exerce sobre a sociedade mas que também a extermina. Esse é o perigo real encarnado na tragédia carioca que precisamos urgentemente compreender após cinco anos.

A aventura de trabalhar juntos

 

O que se pode fazer quando no espaço de trabalho um grupo trai a confiança dos demais? O fenômeno da traição é discutido pelos psicanalistas no campo pessoal, mas o caso da traição do vice-presidente Michel Temer para com sua presidenta,Dilma Roussef, colocou o tema no âmbito político. Nenhum grupamento social está imune a traição e servidores públicos constituem corporações com regras de relacionamento próprias baseadas na confiança e na identidade comum. Quanto esta confiança é quebrada, rompe-se a unidade de grupo e inicia-se um terrível processo de corrosão das relações humanas no trabalho.

 

Porquê uma categoria pode ser vítima da traição? Fundamentalmente, por que alguns foram vitimas de duas mentiras fundamentais de nossa época: a primeira que diz que somos independentes, esse individualismo exacerbado, self-made man, que faz com que cada um olhe para o próprio umbigo e não seja capaz de reconhecer as dívidas que guarda com os colegas de serviço enquanto companheiro de trabalho, etc, A segunda é a imposição capitalista que exalta o consumo, o ter mais, que imprime em você o desejo de coisas que você não possui com  único objetivo de obrigar você a ganhar mais para ter mais. Nesse meio, para o Capital, não interessa sua vida de trabalho, as relações com colegas de serviço, apenas quanto você ganha, como pode ganhar mais e sempre existirá a necessidade de ganhar mais... para  quê?    

 

 

O formação de uma corporação de trabalho de servidores públicos ocorre pela mais pura contigência, ninguém pode escolher os colegas de trabalho que terá. Cidadãos acessam cargos públicos mediante concurso e se transformam em servidores públicos de uma instituição. Para cada novo servidor que ingressa no serviço público, é sempre uma surpresa quem vai encontrar nele, quem serão seus colegas de trabalho, com quem compartilhará o ambiente de serviço. Por isso, a vida cotidiana importa: você estará preso, pelo menos até sua aposentadoria, com um conjunto de servidores que você não escolheu. Inimizades perseguiram você, da mesma forma que você se sentira solitário se alguém não lhe dirigir a palavra. Mas esse não é um meio social marcado pelo pior do ser humano, ao contrário: você aprende a admirar seus colegas, os que entraram antes de você, pela experiência que acumularam e pela sua capacidade de ensinar ao próximo – servidor, talvez você – o trabalho. A primeira qualidade que nos faz admirar nossos colegas de trabalho nunca é uma característica específica e pessoal, mas é uma característica de trabalho. Para estar numa instituição pública é preciso abandonar-se a outros servidores públicos, é preciso adquirir a confiança que a relação profissional estabelece.   

 

Pode ser que algum servidor, em um determinado tempo, rompa com a relação de solidariedade de trabalho com o objetivo de conquistar um lugar maior na hierarquia da instituição. Isso pode acontecer porque a sedução da produtividade exacerbada ainda impõe suas regras de convivio, simplesmente porque também é uma marca dos regimes neoliberais. O capital afeta o Estado não apenas pelas sua regulação econômica - desejando a redução do Estado ou seu investimento. O capital afeta o Estado pela intromissão de uma mentalidade competitiva que é vista na concorrência por ascensão funcional, na disputa por chefias ou privilégios que determinados setores de trabalho possam ter. O abandono e a traição não são estranhos ao serviço público porque, feito de homens, são susceptíveis a seus defeitos, as suas imperfeições e estas, susceptíveis por sua vez ao sistema capitalista e suas regras e contradições. Uma comunidade corporativa de servidores públicos pode constituir uma fenomenologia do abandono, pode constatar a traição de seus integrantes e estas situações são também traumas que o conjunto maior deverá superar com o passar dos dias. Por isso, sempre que uma corporação vê que uma parte sua a abandona, que uma parte sua deixa de acreditar nos ideais defendidos por todos e passa a colocar adiante seus próprios ideais, o grupo como um todo entra em estado de desolação, uma depressão. Como é possível que um grupo menor não se identifique com os ideais do grupo maior? O trauma é a perda de confiança da corporação na parte, na equipe que era familiar. Então, o que a corporação perde não é apenas a luta por um ideal em conjunto, é a confiança depositada no grupo que era familiar e deixa de sê-lo.  

 

Então a questão que se coloca em momentos de conflito é: como poderá o conjunto maior dos servidores conceder perdão? Isto nem sempre é possível, porque o perdão necessita do reconhecimento do sujeito que rompeu a relação de confiança, ele precisa reconhecer que errou para ser digno de perdão pela coletividade.  Quando isso ocorre, o que se tem é a ruptura da cultura de uma organização, ruptura de sua identidade. Quando um grupo não é capaz de compartilhar a identidade de uma corporação, produz-se uma ruptura funcional, isto é, o grupo poderá optar por se isolar, e com isso, se condenar a uma existência onde não terá onde se apoiar ou poderá reconhecer seu erro e esforçar-se para retornar para a identidade coletiva funcional. 

Porquê estas situações podem ocorrer? É que instituições são organismos funcionais. São sistemas, no sentido de que cada parte ou equipe cumpre uma função. Precisa ser assim. Com o passar do tempo, podem surgir anomalias funcionais, a organização pode ser responsável pela sua própria atomização, com sua hierarquia, divisão de setores, incapacidade de chefias superiores em promoverem a unidade da corporação, etc. Mas é essencial a saúde psíquica de uma corporação a crença na ideia de pertencimento aos valores e ideais de grande grupo. Essa crença tem como base a fé na igualdade (de trabalho, de valor, de envolvimento). Somente podemos viver o cotidiano de uma corporação quando seus servidores ou funcionários se tratam com igualdade, o que significa que cada um é capaz de reconhecer no Outro o espelho do seu valor, do valor do seu trabalho, que cada um é capaz de dar ao outro a dignidade de reconhecer-se como sujeito de valor, independente de cargo, salário ou função. O contrário é sempre a defesa do sistema de castas, de privilégios, desigualdade e promoção da inferioridade.  A saúde mental de um corpo funcional depende de tratarmo-nos como iguais, a diferença origina apenas esquizofrênia e estabelece uma obsessão por busca de detalhes – quem trabalha mais, quem trabalha melhor – que o sistema burocrático não é capaz de fornecer simplesmente porque não existe.