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Na segunda série da coleção da Editora N-1 que curiosamente é chamada de ‘Pandemia”, Deborah Danowski escreve o volume intitulado “Negacionismos”. Danowski é professora do pós-graduação em Filosofia da PUC do Rio de Janeiro e após ter trabalhado com metafísica moderna, voltou-se para os temas da globalização e da crise ecológica. Seu texto de debate, proposto pela coleção, foi escrito logo a pós a eleição presidencial e a emergência da extrema direita e pega o gancho das últimas preocupações da autora com o fim do mundo que se anuncia com a catástrofe climática e ecológica, que é objeto de negacionismo por parte da população e de políticos.
Para Danowki, o negacionismo tem papel importante na compreensão da paralisia cognitiva, psíquica e politica atual. Frente aos acontecimentos que resultaram na eleição presidencial, Danowski se vê obrigada a transferir sua preocupação com a catástrofe climática para a catástrofe política brasileira. Em seus estudos, duas são as fontes das expressões mais recentes do negacionismo: o primeiro é o negacionismo de nazistas, ex-nazistas e neonazistas que não reconhecem o Holocausto perpetrado pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial; e o segundo o negacionismo diante das práticas de criação, confinamento e extermínio em massa de animais nas fazendas e fábricas da agroindústria mundial.
Mas as eleições, e com ela a emergência de uma extrema-direita que vivia subterraneamente no país, fez surgir um terceiro negacionismo muito pior que os anteriores, porque é feito em cima de conquistas da democracia: dos direitos humanos e à universidade brasileira, o negacionismo cultivado por parcela da sociedade representa uma ameaça ao conhecimento em suas variadas formas. Essa forma de negacionismo só encontra paralelo nos que advogam a inexistência dos campos de extermínio e se atualiza nas formas de desvalorização do conhecimento produzido na universidade que não se revelam imediatamente rentáveis; na desvalorização dos diversos campos dos direitos humanos, expressos na recusa de temas das agendas feministas, LGBT, negro, indígena, etc. É só olhar o tom dos discursos a partir da eleição, quando reservas indígenas passaram a ter novas regras para servir ao capital, terras quilombolas foram ameaçadas e sem falar do próprio patrimônio natural brasileiro, com a ameaça de abertura de reservas naturais ao turismo.
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A hipótese de Danowski é premonitória: “temos a sensação de ter submergido, não só na negação e no negacionismo de boa parte da classe política, da intelectualidade e da população de modo geral, mas no próprio desejo de morte e extermínio, a um só tempo, do sentido e de qualquer forma de alteridade, que é a mola propulsora de todo fascismo (p.7)”. Danowski explora o campo das ciências do clima, mas ao final, o que quero dizer é que o processo é o mesmo com relação a pandemia do coronavírus. Enquanto a autora vê divergências quanto a projeção da velocidade do aumento futuro das concentrações de gases de efeito estufa, o que vejo é a divergência do Presidente de seu Ministro da Saúde da velocidade e mortalidade de expansão do coronavírus; enquanto Danowski está preocupada em como diversos ecossistemas irão reagir, quais seus pontos de inflexão, estou preocupado como o debate que se faz entre interesses políticos e sanitários, entre atores com poder de decisão que reagem de forma diversa, uns defendendo o isolamento, outros, o retorno as atividades econômicas. No fundo, cada grupo social que representa um interesse e não são também ecossistemas reagindo às determinações de aberturas e fechamento do comércio? São essas inflexões durante o processo que terminarão por aumentar a curva de vítimas.
O que há de comum entre a proposta de Danowski e o que atravessamos hoje? Em ambos, o negacionismo é particularmente presente e se manifesta na incapacidade de reconhecer a importância da natureza na nossa existência. No argumento de Danowski, o clima está em evidência; na minha argumentação, a pandemia do coronavirus é a mesma coisa, ela também é produto da natureza. Ambos assumem ao mesmo tempo um caráter aterrorizante “como uma fera que, provocada, reage das maneiras mais inesperadas”(p.8). Danowski assinala que a inércia, descoberta por Newton, está por detrás das políticas humanas e a razão é o esforço do capital para aumentar seus lucros à custa da exploração do meio natural, da exigência que o imperativo “voltem ao trabalho” influência às políticas sanitárias, que trabalham para “semear a dúvida, ou melhor, a percepção pública de que ainda há dúvida e controvérsia entre os cientistas a respeito da realidade”(p.9). Não é exatamente assim que age a direita mais radical, colocando a dúvida no ar “o que é mais importante, vidas ou empregos?”, discutindo políticas de saúde “isolamento vertical ou horizontal?”. Da mesma forma que a direita americana tomou como posição a negação do aquecimento global, a direita brasileira tomou a negação da pandemia como objeto de política. E da mesma forma como os Estados Unidos ficaram fora do Acordo do Clima assinado em 2015 com Trump, o Presidente, prometendo acompanhar seu ídolo americano, durante o mês de março incentivou a saída dos trabalhadores do isolamento radical. Agora, com Trump defendendo o isolamento, no seu discurso de 31 de março, o Presidente voltou a trás e defendeu o isolamento, a linha do Ministério da Saúde. Esperamos que não seja tarde demais para evitar o aumento no número de mortos.
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Imagem de Marie Sjödin por Pixabay
Danowski lembra que o termo “Holocausto” é reservado pelos historiadores para referir-se ao genocídio dos judeus pelo regime nazista “já foi algumas vezes empregado com o intuito de despertar as mesmas ressonâncias para descrever as práticas de criação, confinamento e extermínio em massa de animais nas fazendas fábricas da agroindústria mundial”. A autora chama a atenção para o detalhe de que Holocausto tem origem no termo grego antigo para sacrifício, Holos, significa inteiro e Kaustós, queimado, enquanto que o termo Shoah, mais usado na língua francesa, vem do hebraico e significa catástrofe “Os dois nomes, sendo reservados a esse acontecimento particular, trazem consigo a ideia não apenas de extermínio de um povo, mas do dispositivo de desumanização preparou e permitiu esse extermínio”(p.12). Danowski sabe que é arriscado usar o termo Holocausto para caracterizar o holocausto animal, já que era uma forma de ofender os judeus à época era representá-los como porcos, sub-humanos, o que soaria como uma heresia. Para dar esse contexto, Danowski cita a passagem de A vida dos Animais, de J.M. Coetzee:
“Eles marcharam como carneiros para o matadouro. Morreram como animais. Foram mortos pelos açougueiros nazistas. Nas denúncias dos campos ressoa com tamanha força a linguagem dos currais e dos matadouros que é quase desnecessário preparar o terreno para a comparação que estou prestes a fazer. O crime do Terceiro Reich, diz a voz da acusação, foi tratar as pessoas como animais”.
Eu acredito que o termo é adequado para os tempos de coronavírus. Parece uma imagem cruel para os tempos atuais? Mas não é exatamente assim que o vírus está tratando a humanidade, fazendo vítimas em todos os países por onde passa morrerem como... animais? Ora, a imagem do Holocausto no sentido de catástrofe é pertinente para o que vemos, esse vírus é o equivalente atual do açougueiro nazista, nossas ruas são nossos currais de criação de vírus que mata sem que saibamos; nossos ajuntamentos públicos, sem nenhuma proteção, equivalem a matadouros. A imagem da carreata de caminhões de mortos na Itália não é essa marcha para os cemitérios de que fala Coetzee? Fica a imagem do vírus como o equivalente do criminoso do Terceiro Reich, é ele que nos trata como animais. Essa imagem é cruel, mas ela não dá conta da natureza do processo que estamos vivendo com o coronavírus? Coetzee continua:
“...estamos [não mais no passado, mas hoje, aqui e agora] cercados por uma empresa de degradação, crueldade e morte que rivaliza com qualquer coisa que o Terceiro Reich tenha sido capaz de fazer, que na verdade supera o que ele fez, porque em nosso caso trata-se de uma empresa interminável, que se auto-reproduz, trazendo incessantemente ao mundo coelhos, ratos, aves e gado com o propósito de matá-los”.
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Imagem de Ronald Plett por Pixabay
Danovisk está preocupada com as indústrias de animais, eu estou preocupado com a produção da morte pelo vírus que transforma a humanidade em animal. Observem: trata-se também de uma empresa de degradação duplicada, porque é da parte de um vírus por um lado, e daí nossa luta entre interesses vitalistas, de defesa da vida humana, e por outro lado de interesses capitalistas de defesa da vida econômica, estes últimos muito cruéis “Devemos parar a roda da economia? É claro que não, é uma gripezinha”, dizem. O que rivaliza com o Terceiro Reich é o capital com seu profundo desinteresse pela vida, transformada em objeto de criação de lucro. Carreatas pelas cidades exigem das autoridades a flexibilização, a volta ao trabalho no instante em que inicia-se uma curva de inclinação fatal: é sempre a mesma empresa de interminável destruição tentando ditar as regras do jogo político para todos sem saber que ao permitir que o vírus mate os homens, mata a sí própria.
Danowski preocupa-se com a negação da indústria alimentar que cria seus campos de invisibilidade, eu me preocupo com a negação desta indústria da morte em andamento, essa capacidade do vírus de matar combinada com a omissão das autoridades, verdadeira tragédia em escala planetária que produz vítimas pelo atraso das mobilizações governamentais. Em cada continente, o vírus elege um país como epicentro: na Ásia, a China; na América do Norte, os Estados Unidos. Será o Brasil o epicentro da América Latina?
O Presidente e parcela da classe média de extrema direita revelaram-se profissionais da negação. O primeiro porque negligencia a força da pandemia “é uma gripezinha” e a classe média de extrema direita nega o vírus em função da necessidade de manter seus negócios. Nenhum deles reconhecem que estão no caminho de um vírus que provocou milhares de mortos por onde passou: quantos milhões ainda morrerão até que os governos se deem conta que pela omissão também são perpetradores dessa mortandade? Quando foi que esqueceram que, em guerra, organiza-se uma economia de guerra?
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Imagem de Gerd Altmann por Pixabay
Muitos dos que negam a mortandade do coronavírus o fazem por não suportarem pensar que suas vidas precisam de uma mudança radical. Para enfrentar a pandemia, uma mudança radical é exigida de imediato e que enfrenta a resistência de empresários e micro-empresários: o isolamento, o abandono radical da atividade laboral “somos todos negacionistas. Quem seria capaz de receber de frente e de peito aberto todas as desgraças do mundo?” diz Danowski. Lembramos que os enfermeiros e médicos são também prisioneiros desse sofrimento e como os prisioneiros dos campos nazistas, terão de encontrar algum modo de sobreviver psiquicamente a tamanha mortandade que está por vir, aquilo que Primo Levi, em “É isto é um homem” chama de batalha entre o sonho e a vigília.
O modo de enfrentamento do coronavírus pelo Presidente e seus apoiadores de extrema direita, felizmente, é diverso da equipe de governo. Danowski associa alguns afetos que a extrema direita reúne que são responsáveis pela negação que nutrem pela pandemia: loucura, ódio à ciência, indiferença às mortes, desprezo pela cultura e ciência mas principalmente, uma pulsão de morte fascista marcada pelos seus gestos abjetos de incentivar o povo a aglomeração. E é notável que existam hordas de pessoas que celebrem esta ignorância. Denowski encerra seu texto com a frase de John Muir, percursor do ativismo ecológico: “quando chegar a hora de uma guerra entre as espécies, estarei do lado dos ursos”. De que lado você acha que está a extrema direita que manda às ruas seus conterrâneos?
Jorge Barcellos é historiador, Mestre e Doutor em Educação. Mantem a página jorgebarcellos.pro.br